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A gastroenterite aguda (GEA) é uma infeção muito frequente nas crianças em idade pré-escolar (tem maior incidência entre os 6 meses e os 2 anos, mas pode afetar qualquer idade).

Escrito por: Cláudia Silva, médica interna de formação específica em medicina geral e familiar, mãe de dois e autora da página de Instagram @sweetisastateofmind. Licenciada entre Coimbra, Lisboa e com um saltinho pela Polónia. Mestrado em neuropediatria. Formação pós-graduada em nutrição geral e da grávida, e parentalidade pela Universidade de Yale.

Nesta infeção, a criança apresenta diarreia com ou sem febre ou vómitos. A infeção vírica é a mais comum e será a desenvolvida neste artigo.

A severidade desta doença depende do grau de perdas de líquido (nos vómitos ou diarreia), e esta avaliação é essencial para prevenir a mortalidade que se associa a esta doença. Felizmente, na maioria dos casos basta uma observação clínica pelo médico ou médica para diagnosticar esta situação e o tratamento é simples e pouco dispendioso.

Como se transmite?

A gastroenterite transmite-se por via fecal-oral. Sim, isso mesmo. Por contacto com fezes contaminadas, geralmente por não haver uma correta higiene das mãos: ao tocar com as mãos contaminadas em outras pessoas ou superfícies, a infeção está a ser disseminada. No caso do rotavírus, este mantém-se contaminante durante semanas nas superfícies.

É importante ter isto em conta na troca de fraldas e higiene das crianças após defecarem – idealmente, esta não deve ser realizada por alguém imunodeprimido ou a fazer tratamentos imunossupressores.

 O que provoca a gastroenterite?

A maioria das GEA é viral, com variáveis graus de severidade de acordo com o agente infeccioso.

Infelizmente, um estudo realizado em Lisboa, em 2008, determinou que a etiologia mais prevalente das diarreias avaliadas na nossa capital era o rotavírus – infelizmente porque estas crianças têm uma probabilidade significativamente superior de ter febre, vómitos, perda de peso, desidratação e necessidade de internamento, comparativamente aos casos negativos para rotavírus.

Felizmente, existe uma vacina disponível para a imunização contra rotavírus, que pode ser prescrita por médico e estará, no futuro, (e de acordo com a indicação da DGS em 2019,) disponível para grupos de risco no Plano Nacional de Vacinação.

Como sei se o meu filho tem GEA?

Tipicamente o quadro clínico começa com náuseas súbitas, por vezes com vómitos, e poucos dias depois diarreia aquosa (fezes muito moles / líquidas e/ou um aumento da frequência na defecação: >3/dia) e cólicas, com ou sem febre. 

Nos primeiros meses de vida o aumento das vezes que o bebé faz cocó não é tão indicativo – considera-se a alteração da consistência em relação ao habitual.

Há outras patologias respiratórias que por vezes se fazem acompanhar de diarreia. Nestes casos, geralmente os sintomas respiratórios (tosse, “ranho”,…) precedem os sintomas digestivos.

Independentemente do vírus implicado, casos ligeiros resolvem em média em 3-7 dias.

O surgimento de sangue ou muco, assim como a duração superior a 14 dias implicam que provavelmente não se trata de vírus e é necessário ser novamente avaliado por médico.

Quando é que devo ir à urgência?

Quando a infeção se dá num bebé (principalmente se <2 meses), se o bebé ou criançatem doença crónica (ex. diabetes, insuficiência renal), vómitos persistentes, diarreia muito frequente (a ESPGHAN indica >8 episódios/dia), ou sinais de desidratação.

Se a criança apresentar febre alta (a ESPGHAN considera >40ºC), sangue ou muco nas fezes, dor abdominal e alteração do estado geral (letargia, menos vontade de brincar, pouco reativo, …), também deve ser avaliada por médico.

É importante que saiba dar algumas informações ao médico que vai avaliar o seu filho:

Diarreia: há quantos dias, quantas vezes por dia, aspeto das fezes (aguadas/ sólidas/ com sangue ou muco).

Vómitos: há quantos dias, quantas vezes por dia, aspeto (alimentos, sangue, “verde”) e quanto tempo passou desde o último vómito.

Urina: número de fraldas cheias / tempo sem urinar, cor da urina e se tem dor ao urinar.

Se fez tratamento antibiótico recentemente, viajou / esteve num local sem água potável ou em contacto com animais não desparasitados, se há mais alguém com um quadro semelhante nos contactos da criança.

Aspeto geral: perda de peso, sensação de sede, nível de alerta, irritabilidade, presença de lágrimas no choro. Também é importante saber descrever o que comeu e não tolerou.

Em crianças sem sinais de alarme, “é só esperar que passe”?

O que mais preocupa na criança é a desidratação, algumas vezes associada a hipoglicémia (baixa do açúcar) – quanto mais pequenina for a criança, menos reservas terá. É por esta razão que a administração de soluções de rehidratação oral na criança que não consegue alimentar-se adequadamente é essencial. Isto deve ser avaliado por um médico.

Se for necessário algum tratamento, este será dirigido às queixas que a criança apresentar, não sendo na maioria dos casos necessário qualquer estudo laboratorial para o diagnóstico. 

Portanto, a questão da desidratação é importante para estimar a gravidade… mas como avalio isso?

A gravidade será sempre superior numa criança com patologia prévia (que esteve doente recentemente ou que tem alguma doença crónica ou faz tratamentos crónicos, principalmente se imunodeprimida).

Enquanto a criança está com diarreia é importante estar atento a alguns sinais de desidratação:

Se diminuiu a frequência com que urinava mesmo continuando a beber líquidos,

Se tem mais sede do que o habitual, 

Se os olhos parecem encovados ou está com “mau ar”,

Se perdeu peso (sendo este o sinal mais aceite pelas várias sociedades como indicador de gravidade).

Vai precisar de medicação?

Não existem medicamentos anti-víricos recomendados na GEA “comum”. Os antibióticos só têm interesse se for feito diagnóstico de gastroenterite bacteriana.

Não devem usar-se medicamentos que impedem o vómito ou a diarreia sem prescrição médica. Têm efeitos secundários, nomeadamente cardíacos, que implicam uma decisão médica ponderada.

Além disto, não existe, atualmente, indicação para fazer desparasitação preventiva: as desparazitações “de rotina” não evitam reinfeção, podendo tornar um tratamento futuro mais difícil devido às resistências;

Solução de rehidratação oral

A hidratação é o tratamento mais importante. As soluções de rehidratação disponíveis e recomendadas têm baixo teor de sódio (sal), a chamada “baixa osmolaridade”.

Se o bebé tiver menos de 6 meses ou ainda não tiver iniciado a alimentação complementar, importa reforçar a frequência da amamentação, conforme tolerância. Existem estudos que mostram que o leite materno reduz o risco e severidade da diarreia.

O que muda na alimentação do bebé (de acordo com as principais Sociedades de Gastroenterologia)

Se a criança faz uma alimentação variada e saudável, não é necessário mudar muita coisa.

Amamentação continua em livre demanda: os bebés ou crianças amamentadas não devem deixar de o ser. Podem até aumentar o número de mamadas durante esta fase ou substituir as refeições por leite materno e está tudo bem. Se o bebé é alimentado com leite artificial, não deve introduzir ou alterar a diluição da fórmula. A fórmula sem lactose pode ser recomendada em casos específicos após avaliação médica, tendo evidência de reduzir a duração dos sintomas em crianças hospitalizadas, mas não nas que não necessitam de internamento.

A dieta BRAT (pão, arroz, maçã e tostas) não é necessária: A dieta à base de pão, arroz (nomeadamente à base de caldos de arroz), maçã e tostas, já não aparece nas recomendação atuais, assim como bebidas com alto teor de açúcar / adoçantes e gaseificadas.

Dieta normal: Logo que a criança consiga ingerir líquidos sem vómito, é fortemente recomendado que retome a dieta normal (em 4-6h, de acordo com as recomendações).

Evitar gordura, açúcar, alimentos com muitas fibras e alimentos processados: Deve ser realizada uma dieta adequada à idade da criança, tendo por base grelhados e cozidos, restrição de gorduras e açúcares (mas não necessária a exclusão) e evicção de alimentos processados – ou seja, a realização de uma alimentação saudável. A única restrição unânime é a de bebidas açucaradas. A descontinuação da lactose é, no geral, desencorajada.

Na prática, podem ser necessárias alterações

Em alguns casos, durante um período limitado de tempo e com o objetivo de proporcionar conforto à criança, a postura adotada na prática pode diferir ligeiramente:

Uma vez que esta infecção fragiliza a função intestinal, pode haver alguma noção de que a criança prefere algumas comidas (geralmente caldinhos pouco temperados, sem gordura) e não tolera certos alimentos (às vezes só de os ver ou cheirar).

Durante esta aparente “intolerância” (que não o é, verdadeiramente) pode trazer conforto adaptar uma ou duas refeições até a criança estar bem… mas sem restrição dos nutrientes importantes!

Uma alternativa poderá ser mudar a apresentação do alimento – por ex. se não tolera o leite, dar iogurte até voltar a tolerar… – de acordo com o que der mais conforto à criança nesta situação debilitante e por um curto período de tempo.

Alimentos a oferecer

Leite materno à vontade (convém reforçar nesta fase)

Gelados de leite materno

Carnes magras: frango sem gordura, peru, coelhos ou peixes brancos não gordos cozidos, no vapor, grelhados ou ssados com pouco azeite

Vegetais sem casca*: cenoura, chuchu, abóbora, nabo, etc cozidos, no vapor ou assados com pouco azeite

Cereais e tubérculos: arroz branco, massa, batata, inhame, etc, cozidos

Fruta sem casca: maçã, pera, banana, etc cozidas e ou em puré ou banana ao natural em pedaços ou amassada

Pode oferecer os alimentos triturados em sopa (por exemplo: sopa de batata, cenoura, alho francês e peito de frango) ou como segundo prato (por exemplo: hambúrguer de peru, arroz branco cozido e puré de abóbora)

*Uma nota sobre a beterraba: a beterraba pode tingir a urina ou as fezes de vermelho/cor-de-rosa. Se quiser, nesta fase pode evitar oferecer para não correr o risco de mascarar algum outro sintoma (como é o caso do sangue nas fezes).

Alimentos a evitar

Como mencionado anteriormente, a recomendação atual é para o bebé ou criança voltar à dieta normal (contando que essa dieta seja saudável), mas há alimentos que podem não ser tão bem tolerados:

Alimentos processados e/ou ricos em açúcar

Alimentos ricos em fibras: cereais integrais, vegetais verdes escuros, leguminosas

Frutas ácidas

Carnes gordas (carne de vaca, porco, pato, peixes gordos) e ovos

Frutos oleaginosos e sementes

Vegetais crus e frutas cruas e com casca

Produtos lácteos

Probióticos e prebióticos

O uso dos probióticos só surgiu como vantajoso em documentos relativamente recentes e sem indicação específica de doses, pelo que o seu uso ainda não foi generalizado. Uma vez que os preparados com probióticos disponíveis no mercado variam muito, ainda não é possível atribuir maior eficácia a nenhum preparado específico.

Uma revisão de 2011 atribui evidência a Saccharomyces boulardii, Lactobacillus rhamnosus GG e Lactobacillus reuteri SD2112 no tratamento da diarreia de causa infeciosa. A ESPGHAN recomenda o tratamento com um dos dois primeiros em associação com a solução de rehidratação oral para reduzir o tempo e intensidade dos sintomas da GEA.

Que outros cuidados são importantes?

Durante qualquer infecção é (ainda mais) importante ter cuidado com a higiene das mãos, nomeadamente antes de confeccionar os alimentos e antes de comer, assim como após idas aos sanitários.

A troca de fralda deve ser acompanhada de cuidados redobrados, principalmente quando existem várias crianças em casa: Lavar bem as mãos do adulto que troca e da criança!

Neste período a criança não deve utilizar piscinas partilhadas, frequentar a escola nem espaços onde várias crianças partilhem casa-de-banho.

Importa sempre o controlo das água com saneamento básico, desparasitação dos animais domésticos e cuidados de conservação e confecção alimentar adequados.

Fontes:

Guidelines para o tratamento de gastroenterite da WHO, 2005

Sociedade Portuguesa de Pediatria, Protocolo de parasitoses intestinais, Acta Pediátrica Portuguesa, 2012.

European Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) and European Society for Pediatric Infectious Diseases, Guideline for the treatment of AGE in children, 2014.

NSW Ministry of Health – Australia guidelines for the treatment of pediatric AGE, 2014.

NICE, Diarrhoea and vomiting caused by gastroenteritis in under 5s: diagnosis and management, 2009.

World Gastroenterology Organisation Global Guidelines, Probiotics and prebiotics, 2017.

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